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Meu encontro com Alice através do espelho e o que eu vi por lá*

Era uma vez um curso de verão de 2 semanas em Portugal. Eu tinha recebido a divulgação do curso num daqueles mailing-lists em que todo mundo sabe de tudo e tem opinião sobre quase tudo. Quando li a mensagem, uma velha paixão reascendeu em mim, pois há uns 2 anos atrás eu já tinha ouvido falar neste curso e tinha ficado bem entusiasmada. Mas, era outro momento: um oceano físico me separava de Portugal e um oceano de responsabilidades familiares me prendia ao Brasil. Agora, em 2017, novos ventos sopravam e eu me sentia tão solta e desatrelada de tudo que a pergunta era: por que não?

Atualizei meu currículo e publicações, escrevi uma carta de motivação singela, mas muito honesta. Os meses passaram, a seleção atrasou e eu já pensava em outros planos para o verão quando o “sim” chegou. Tudo estava em harmonia e numa conspiração incrível: o curso aconteceria ainda durante o período de aulas das crianças, o que me fazia sentir mais confiante e tranquila em relação a minha ausência por 15 dias. Lembro-me de ter cozinhado um dia inteiro para deixar a geladeira lotada de comidinhas e, depois também arrumei a agenda de passeios e festa de aniversário para as crianças se ocuparem durante o final de semana que eu não estaria em Lilliput.

Universidade de Coimbra em Portugal

O combinado era encontrar o grupo, na Universidade de Coimbra, as 10hs da manhã. Eu cheguei na noite anterior esvaída depois de ter enfrentado duas viagens de trem e uma viagem de avião. Mas, no caminho dentro do trem já em terras lusitanas, meus olhos se encheram de esperanças: a paisagem ao longo dos trilhos, as casas, as cores, a vegetação, as luzes, as pessoas, tudo, enfim, me remetia ao Brasil, ao interior de São Paulo, às minhas raízes. Eu cresci ouvindo a minha mãe falar que nossa família tinha laços portugueses, lembro-me do livro com a nossa árvore genealógica e com o brasão... Mas, àquele discurso do passado me faltava concretude. Precisei ir à Portugal para desmistificar minha aversão ao colonizador, ver semelhanças, compreender a dor da partida e a angústia por se reproduzir um modo de vida num outro local. Aquelas varandas, as muradas baixas, as cores verdes e alaranjadas, os telhados caídos não são brasileiros, como eu julgava, são encontros e amálgmas de uma vida além mar.

Painel na Universidade de Coimbra

Eu era pura arrebatação naquela manhã solar de Coimbra. Conheci pessoas com as mais variadas idades, de lugares singulares e com aspirações todas humanas. Foi supreendente como, ao final de 2 semanas, aquelas pessoas tão diferentes estavam tão próximas e unidas. Inusitamente, foi doído dar adeus e pensar que estávamos voltando aos nossos destinos uma vez mais.

Naquela minha euforia usual, eu já havia lido os textos recomendados e me sentia realizada por assistir às palestras de um professor cujos artigos eu havia estudado, pela primeira vez, quando estava no segundo ano da faculdade de direito, durante as aulas de sociologia. Mas, não foi só isso. O curso de verão não foi apenas permeado pelas aulas do lente catedrático, representou também um momento único de questionamentos pessoais. Isso porque, tivemos aulas de poesia, de teatro, de rap, de filosofia, de culinária, de tecelagem. E, ao todo momento, éramos desafiados a sairmos do conforto das cadeiras e dos nossos lápis. Pensar, criticar, avaliar, tudo, de forma ativa e contundente. Se colocar no lugar do outro, e aprender com o Sul.

Costurando em Portugal

Foi um rolo compressor que me esmagou, e dos pedaços me pedia para fazer colagens. Diariamente, das 9hs às 21hs, eu precisava estar atenta, cumprir tarefas, divagar, produzir, responder, perguntar. Ao final de cada dia – eu que estava acostumada à minha solidão criativa – me sentia exaurida mentalmente. Eram infinitas demandas sociais desde o café da manhã, passando pelos almoços, jantares e lanchinhos. E não havia tempo para ficar sozinha. Isso foi um exercício pesaroso para mim, muito mais difícil do que escrever versos, cantar rap ou fazer cena de teatro mudo.

Certamente, ficaram com aquela impressão que muitos têm de mim: reservada e inacessível. Eu já estou acostumada, pois esse é um dos meus fardos. Mas, o fato é que eu sou um “bicho do mato” que matuta. E, para falar com meus botões, eu preciso de silêncio e espaço. E, encontrei o ambiente propício para viver absorta durante as minhas caminhadas matinais no bosque das Termas de Curia. Eu acordava as 7hs, tomava meu café cercada de poucos, e corria para o mato. Caminhava, corria, ouvia música, fazia flexões. Em seguida, de banho tomado, cabelo lavado e vestido florido, eu enfrentava o meu dia repleto de vozes, de contrapontos e de sonhos.

Por fim, tive uma conversa pessoal com o lente catedrático, propûs um artigo a partir da doutrina dele e da minha pesquisa. Calcado em sua sabedoria, ele me instigou a ir além: seria preciso sair do escritório, da biblioteca e ouvir as vozes que brotam da floresta. Foi um confronto para mim, pois cresci escutando dizer que ciência se faz em laboratório, e que eu não poderia me deixar levar pelos meus sentimentos em relação ao objeto de estudo. Reviravolta proposta, semente plantada. O bicho do mato deu adeus à terna e espuleta Alice, atravessou o espelho novamente, voltou para Lilliput e, desde então, não parou mais de ruminar para o bem ou para o mal.

E a música para lembrar esse momento não é portuguesa, não é brasileira, nem ao menos é um rap (porque me falta conhecimento para tanto), e porque eu sou filha do rock. Mas, é uma música também vinda do Sul e que conta a história de mais uma das tantas opressões que nos marcam: “We carry in our hearts the true country/ And that cannot be stolen/ We follow in the steps of our ancestry/ and that cannot be broken”.

* “Alice. Espelhos Estranhos. Lições Imprevistas” é o nome do projeto de pesquisa coordenado pelo Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra do qual deriva o Curso de Verão.

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